Dever de Reparação, Pe. Garrigou-Lagrange
Pe. Garrigou-Lagrange, OP
“Alter alterius onera portate”.
Levais os fardos uns dos outros, Gl 6.
Tratamos recentemente do dever do
reconhecimento, convém falar agora do dever de reparação. A reparação da ofensa
feita a Deus é geralmente chamada em teologia de “satisfação”. Os fiéis
instruídos costumam conhecer suficientemente bem a doutrina do mérito; porém, é
menos conhecida a doutrina da satisfação ou reparação, que, se lembra a do
mérito, dela difere, contudo. Os fiéis crêem firmemente que Jesus satisfez por
nós em estrita justiça, que a Santíssima Virgem satisfez por nós de uma
satisfação de conveniência; mas conhecem menos o lugar que a satisfação deve
ocupar nas nossas vidas.
Lembremos sobre esse ponto os princípios; veremos em seguida como o católico em estado de graça pode satisfazer ou reparar por si e pelo próximo.
Princípios desta doutrina
Os princípios deste ensinamento
expõem-se, em teologia, quando se trata do mistério da redenção e, em seguida,
no tratado do pecado, da pena que lhe é devida e no tratado da penitência.
Estes princípios foram revelados e todo fiel adere a ele firmemente pela fé;
podemos assim resumi-los.
Se mérito é direito a recompensa, direito
do justo à vida eterna, enquanto permanece em estado de graça, e à aumento da
caridade, a satisfação é reparação a uma ofensa feita a Deus pelo pecado. Esta
ofensa nada tira de Deus de sua glória essencial, de sua beatitude, mas da sua
glória exterior, de sua influência, de seu reino sobre nós.
O pecado mortal como ofensa nega na
prática a dignidade infinita de Deus como fim último ou bem soberano, posto que
prefere um mísero bem finito a Ele. Foi preciso a Incarnação do Verbo e seu ato
de amor teândrico para que houvesse uma satisfação perfeita ou adequada da
ofensa feita a Deus pelo pecado mortal. Jesus satisfez por nós em estrita
justiça, oferecendo a Deus, sobre a cruz, como diz Santo Tomás: “Um ato de amor
que lhe agradasse mais do que todos pecados reunidos lhe desagradam.” Reparou
assim a ofensa feita a Deus, e aqueles a quem se aplicam seus méritos e sua
satisfação, são reconciliados, justificados, o pecado lhes é apagado, bem como
a pena eterna devida ao pecado mortal. A Santíssima Virgem satisfez por nós de
uma satisfação de conveniência, fundada na caridade ou na mui intima amizade
sobrenatural que a unia a Deus Pai e ao seu Filho. Todo bom católico conhece
esta doutrina. Mas não se dá normalmente atenção o bastante à satisfação ou
reparação que deve haver na vida do justo, a quem já foram perdoados os
pecados.
O Concílio de Trento ensina, e isto está
muito relacionado com a doutrina revelada sobre o purgatório, que, mesmo quando
o pecado mortal nos foi perdoado e, com ele, a pena eterna que lhe é devida,
pode restar, e frequentemente resta, uma pena temporal que deve ser paga nesta
vida ou depois desta vida, no purgatório. Se a não pagamos nesta vida,
merecendo, tirando proveito das missas e indulgências, pagaremos no purgatório,
sem mérito, sem crescer na caridade. Ademais, o purgatório é propriamente uma
pena; não pode portanto ser infringida senão por uma falta, que poderia ser
evitada e que poderia ter sido expiada na terra. Assim, os melhores católicos
fazem boa parte do seu purgatório antes de sua morte.
Esta doutrina da reparação se funda, como
o mostra santo Tomás, ao tratar da pena devida ao pecado, na definição mesma do
pecado. Há no pecado, quando mortal, dois aspectos. Primeiramente, por ele
desviamo-nos de Deus, nosso fim último, e, então, se morremos nesse estado,
mereceremos ser eternamente privados de Deus. Em outros termos: se morremos
nesse estado, a desordem habitual do pecado grave dura para sempre e a pena da
privação de Deus que lhe é devida, também dura para sempre. Se, ao contrário, o
pecado mortal é perdoado pela conversão que restitui o estado de graça, a pena
eterna devida ao pecado também é perdoada!
Mas há no pecado mortal um segundo
aspecto: não apenas nos desviamos de Deus, mas nos voltamos para um bem
perecível, e o preferimos a Deus.
Há, pois, dupla desordem moral, que pede
dupla pena. O pecador não apenas se afasta de Deus, mas prefere algo a Deus,
isto é, prefere seu gozo pessoal ao reino de Deus; esta segunda desordem pede,
também ela, uma reparação. A justiça exige que o pecador que preferiu um bem
temporal a Deus seja privado de um bem temporal ou padeça uma pena temporal.
O pecado venial que nos liga
imoderadamente a um bem passageiro merece também uma pena temporal do mesmo
gênero, porém mais ligeira.
Tudo isso se concebe muito facilmente: a
vontade que se conforma demasiadamente consigo mesma, contra a ordem divina,
deve reparar esta transgressão de modo a reconhecer o valor da ordem divina. Do
mesmo modo, a vontade que viola a ordem da consciência é punida pelos remorsos
de consciência. Ainda do mesmo modo, a vontade que viola a ordem social e suas
leis deve ser submetida a uma pena que o magistrado guardião desta ordem social
infringirá. É o que demonstra são Tomás[1]. Platão também, num de
seus mais belos diálogos, Górgias, após ter demonstrado que é
melhor sofrer uma injustiça que cometê-la, acrescenta que o maior dos males que
pode ocorrer a um criminoso, após seu crime, é seguir impune, uma vez que,
dessa maneira, não retorna à ordem da justiça. Ele deveria, diz Platão, vir
acusar-se perante os juízes, e demandar a pena que mereceu para assim retornar
à ordem da justiça, após a ter violado. Idéia sublime, inspirada por tradições
religiosas que de longe anunciavam, por assim dizer, o que haveria de ser a
reparação no mistério da Redenção e no sacramento da penitência.
Na vida do justo, a graça santificante
possibilita satisfazer por si mesmo e pelos outros a pena temporal devida ao
pecado já perdoado; quem o faz, abrevia em muito o seu purgatório. Ora, como
pode o justo satisfazer por si mesmo, e pelos outros?
Como o justo pode satisfazer por si
mesmo ?
Ele o pode fazer de dois modos: primeiro,
pela penitência sacramental, assistindo Missas, ganhando indulgências; segundo,
por suas próprias boas obras (ex opere operantis), na medida em que
tenham, em graus diversos, um aspecto penoso, necessário à satisfação, que se
acrescenta ao mérito.
A penitência sacramental feita em estado
de graça produz imediatamente seu efeito santificante, mas é proporcionado ao
nosso fervor e, frequentemente, uma parte da pena temporal ainda resta a ser
paga.
A missa a que assistimos ou que é dita
por nós, obtém certamente a remissão total ou parcial da pena temporal devida
aos pecados já remidos.
O ganho de indulgências também é obra de
satisfação, serve para pagar a dívida da pena temporal pelos pecados perdoados.
Seu principal valor vem do poder de Chaves da Igreja.
Como podemos, ademais, satisfazer
ou reparar nesta vida por meio da prática de boas obras (ex opere operantis)?
É preciso, antes de mais nada, que estas
sejam obras meritórias, ou seja, moralmente boas, livres, feitas em estado de
graça e, como peregrino, por um motivo sobrenatural. Para que sejam
satisfatórias, é preciso ainda que, além do mérito, elas tenham um aspecto mais
ou menos penoso, isto é, que impliquem numa renuncia, num esforço, num
sacrifício. Isto santo Tomás explica muito bem, quer se trate da satisfação que
se junta aos méritos de Cristo, ou aos de Maria, ou que se junta aos nossos
próprios méritos. Diz ele: “A satisfação, para reparar pelos pecados passados e
obter a remissão da pena temporal que nos é devida, deve ser penosa. O pecador
subtraiu de Deus a glória exterior que lhe é devida; a ordem e a justiça
reclamam que, em troca, alguma coisa seja subtraída do pecador, que alguma pena
lhe seja imposta”[2]. É preciso, portanto, para satisfazer, fazer
algo de penoso, carregar sua cruz, morrer para alguma coisa; muitos
esqueceram-se disso nestes últimos anos, antes da derrota; cuidava-se até mesmo
para que a mortificação fosse reduzida estritamente ao mínimo, e até a fazer
com que desaparecesse completamente. Foi então que Nosso Senhor impôs novos
sofrimentos com a guerra: foi preciso tornar a virtude necessária, foi preciso
sofrer muito[3].
Assim como a caridade, a obra mais
satisfatória será a mais penosa, a que mais se assemelhar à cruz do Salvador.
Não obstante, se a diminuição da dificuldade provém precisamente de uma maior
caridade, ela não diminui o valor da satisfação; neste caso, é uma dificuldade
subjetiva que se diminui com o progresso da caridade; não uma dificuldade
objetiva; esta provém do caráter mesmo do objeto, que exige uma grande
generosidade, como ocorre no martírio.
Entre as obras penosas que a Igreja
recomenda como satisfação ou reparação, deve-se contar o jejum, a abstinência,
as vigílias, a paciência nas contrariedades e provações, suportar
sofrimentos, a aceitação da morte e das angústias que podem acompanhá-la.
“Possuir sua alma na paciência”, é agir. São Tomás diz mesmo que o ato
principal da virtude da fortaleza não é a ofensiva ou o ataque, mas suportar
perseverante coisas penosas, a constância nas provações, como se vê nos
mártires.
As cruzes escondidas, suportadas em
silêncio por longo tempo, muitas vezes são mais meritórias e satisfatórias que
brilhantes ações heróicas de um momento. A este propósito, convém aconselhar a
bela oração de São Pio X para a aceitação antecipada da morte e de todos os
sofrimentos físicos e morais que a precederão e acompanharão[4].
As boas obras, mais ou menos penosas,
diminuem nosso purgatório e, pelo mérito que implicam, aumentam em nós a vida
da graça e a felicidade do céu. Quanto a isso, é preciso lembrar que um ato
muito generoso de caridade, com o valor de dez talentos, vale mais que dez atos
fracos de um talento; com efeito, estes últimos estão mais ou menos mesclados
de tibieza; a qualidade aqui sobrepõe-se a quantidade. O santo cura d’Ars devia
merecer e reparar mais que todos seus paroquianos juntos.
Como pode o justo satisfazer pelo próximo?
Todos os fiéis conhecem esta doutrina de
fé, que o justo pode fazer celebrar missas e ganhar indulgências pelos
defuntos, e que pode também pagar por um outro justo a pena temporal devida aos
pecados já remidos. Com efeito, diz são Paulo: “Levais os fardos uns dos
outros”[5]. São Tomás explica[6] e nota que, se os credores humanos
admitem que uns paguem as dívidas de outros, ainda mais o admitirá o Senhor;
sobretudo se consideramos que sofrer por outrém supõe maior caridade que sofrer
por si mesmo. Sofrer por outrém grave dor de cabeça de três ou quatro horas
satisfaz mais que sofrer por si mesmo algo mais penoso.
Se é a caridade que move, o justo pode
portanto satisfazer pelo seu próximo.
Aqueles que confiam a Maria tudo o que se
possa comunicar nas suas boas obras meritórias e satisfatórias e nas suas
orações, encarregam-na de o distribuir a seu gosto. Ela o faz com muito maior
sabedoria do que nós, pois vê, em Deus, quais de nossos parentes ou amigos,
nessa vida ou no purgatório, mais precisam de socorro.
Se não fazemos este ato e se não
designamos alguma pessoa, é provável que Deus aplique estas satisfações àqueles
que nos são mais caros.
É assim que os justos podem sofrer com
proveito pelo próximo, e participam eles mesmos nas satisfações das almas mais
generosas, nas almas vítimas que, nas mais trágicas horas, multiplicam-se pelo
mundo, para pagar por seus pecados[7].
É o Senhor quem as suscita, quem lhes dá esta vocação sublime, quem lhes
sustenta por vinte e trinta anos num leito de sofrimentos, como o demonstra a
vida do santo padre Gérard, da diocese de Sées, escrita por Myriam de G.,
intitulada “Vinte dois anos de martírio”; este padre santo, torturado ao longo
de tantos anos pela tuberculose dos ossos, oferecia cada dia seus sofrimentos
pelos padres de sua geração e de sua diocese. Levaram-no seis vezes a Lourdes;
ele compreendeu que a santa Virgem não o curaria, mas, apesar as grandes dores
que a viagem lhe causavam, desejava retornar a Lourdes mais umas seis vezes,
não para pedir sua cura, mas pela conversão dos pecadores. Almas vítimas, mais
numerosas do que pensamos, trabalham neste momento, à exemplo de Nosso Senhor e
de Maria, pela pacificação do mundo.
Os sofrimentos do justo devem assim mais
e mais se assemelhar à cruz de Jesus. Há três tipos muito diferentes de cruzes:
a cruz do mau ladrão foi uma cruz perdida; há muitos sofrimentos perdidos no
mundo, pois não são padecidos cristianamente; a cruz do bom ladrão lhe foi
útil, ele pôde ouvir: “Estarás comigo esta noite no paraíso”; a cruz de Jesus
foi redentora, não para ele, mas para nós. E quanto mais os santos se aproximam
do Salvador, mais as suas cruzes assemelham-se à dele, mais são fecundas e, nas
horas de maior tribulação, como as de agora [8],
são eles, por seus sofrimentos aceitos por amor, que carregam o mundo e lhe
permitem durar.
A fecundidade da vida de reparação não
cessou de se manifestar nos santos ao longo dos séculos. A exemplo de Nosso
Senhor, os Apóstolos selaram seu testemunho com seu sangue e, durante os três
primeiro séculos da Igreja, o sangue dos mártires não cessou de suscitar novos
católicos.
Na Idade Média, são Francisco recebeu os
dolorosos estigmas da Paixão do Salvador, são Domingos se flagelava três vezes
a cada noite, pelos seus próprios pecados, pelos pecadores que iria evangelizar
no dia seguinte e pelas almas do purgatório; ele quis que, na sua Ordem, além
do estudo, da oração e do apostolado, fossem observadas práticas penitenciais.
Este mesmo espírito se verifica nos
grandes reformadores do século XIV: são Carlos Borromeu, santa Teresa, santo
João da Cruz, santo Inácio. São Vicente de Paulo, no meio de seus duros
trabalhos, aceita sofrer para libertar um teólogo das dúvidas que o tormentavam
e, ele mesmo, durante quatro anos tem de superar heroicamente uma forte
tentação contra a fé, o que multiplicou suas forças e tornou sua união com Deus
ainda mais firme.
No século XVIII, são Paulo da Cruz funda
a Ordem dos Passionistas, consagrada à reparação e, ele mesmo, ainda que já
tivesse atingido uma união muito íntima com Deus com a idade de trinta anos,
atravessa quarenta e cinco anos de sofrimentos interiores ininterruptos pela
conversão dos pecadores. Na mesma época, são Geraldo Maggela, filho espiritual
de santo Afonso, é prevenido, por uma inspiração, que receberá uma oportunidade
de se tornar santo, e deve estar atento para não perdê-la; pouco após, é gravemente
caluniado, o que lhe acarreta uma sanção muito severa: é privado da comunhão;
ele tudo aceita por amor de Deus. Meses depois, a calunia é descoberta, seu
superior lhe pergunta: “Por que o senhor não se defendeu?” Ele responde: “Meu
padre, está dito na sua Regra que não devemos nos escusar quando somos
injustamente repreendidos”. Na mesma época ainda, são Bento-José Labre é modelo
completo de vida reparadora.
Por vezes, são as crianças que, movidas
por uma inspiração divina, compreendem todo o preço do sofrimento aceito por
amor. Nos últimos anos, em Roma, sob Pio XI, uma criança de seis anos e meio,
Antonietta Meo, cuja vida já se publicou [9],
com câncer na perna, aceita muito generosamente a amputação pelas grandes
intenções da Igreja, e diz a seu pai, após a operação, no meio de muitas dores:
“Papai, a dor é como o pano; quanto mais resistente, melhor; assim, quanto mais
forte a dor, melhor se a aceitamos com amor pela conversão dos pecadores”.
Estes elevados exemplos nos são dados de
tempos em tempos para nos tirar de nossa sonolência, e nos convidar a oferecer
mais generosamente as contrariedades ou penas que se nos apresentam para
reparar as ofensas cometidas contra Deus por nossas próprias faltas, e
trabalhar pela conversão das almas, na medida em que o Senhor de toda
eternidade quis para cada um de nós [10].
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